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nota da edição original | por um arquivo da biosfera trans

Atualizado: 29 de ago. de 2024


*nota da edição original


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A história das nossas letras, desde El aguinaldo puertorriqueño (1843) e os paternalismos literários até a literatura revolucionária de décadas recentes, em geral não pode atender às propostas estéticas - e também as vidas - de escritories de experiência trans, que se deparam com condições particulares de exclusão devido às relações coloniais que estruturam o diário viver em nosso arquipélago. Es portorriquenhes de experiência trans desenvolveram seu próprio cânone poético por força de esforços colaborativos de sobrevivência e laços comunitários. Este ecossistema afetivo levou elus a imaginarem futuros fora das imposições de gênero, da transfobia institucionalizada e do preconceito sistêmico, assim como dos limites impostos pelas culturas letradas. La piel del arrecife: Antología de poesía trans puertorriqueña é um arquivo e uma homenagem a esse projeto coletivo.


Esta é uma antologia trans em sua concepção e criação. Desde o ano em que começamos a trabalhá-la, vivemos a ressaca de María, uma enxurrada de terremotos no sul da ilha, uma pandemia de proporções globais, múltiplos desastres naturais acelerados pelas mudanças climáticas tais como os fogos que arrasaram Califórnia e Austrália, uma crescente onda de governos e ataques fascistas, revoltas populares em resposta a supremecia branca e o perene espectro da guerra e do imperialismo. Também durante este tempo Val Arbonies Flores ajustou seu nome e mudou seus pronomes. Terminou seu bacharelado e se candidatou a uma pós graduação fora de Porto Rico, escapando como muites jovens e migrantes boricuas de todas as idades e profissões de um salário mínimo entre $2.13 e $7.25 dólares por hora desde a imposição da lei PROMESA. Roque Raquel Salas Rivera tomou a decisão de mudar seus pronomes e, depois, de tomar testosterona. Mudou-se para Santurce com a ideia de regressar para Mayaguez. Raquel Albarran atualizou sua experiência de gênero como mulher e pessoa não binária. Vivemos entre amores e belezas que em geral não são hetero nem cis. Criamos coalizões que são sonhos, que são biosferas inteiras, que são latidos entre muitos mundos. Assim sendo, como nos convida a pensar C. Riley Snorton a partir de sua leitura de Cathy Cohen, como sustentar projetos políticos radicais cuir e trans onde se priorizem as análises compartilhadas do poder mais além de um sentido identitário estável e homogêneo? A crise que cada vez parecia ser mais apocalíptica nos convenceu mais profundamente de que por cada coisa que nos tiram devemos pedir, exigir e desejar mais.


As experiências que povoam o livro resistem a categorizações definitivas. Nestas páginas encontramos poetas que se movem entre idiomas ou se recusam a escrever nos registros excludentes de um espanhol binário; poetas que vivem em Porto Rico e na diáspora e trabalham para sustentar redes relacionais contraditórias e afetuosas; poetas que nunca antes publicaram e poetas com audiências mais amplas; poetas que se falam entre si e poetas que só se conhecem através deste diálogo de experiências semelhantes, mas sem conjuntura precisa; poetas que são íntimos em sua raiva e públicos em sua intimidade. Muito além de reunir uma tipologia de identidades, esses poemas nos convidam a mergulhar nas profundezas tectônicas da experiência trans porto-riquenha, a ressignificar nossos próprios apegos a partir de suas particularidades. Nesse processo nos demos conta de algo que segue nos parecendo divino: a palavra "poeta", em si, carece de gênero. São as incorporações, os crustáceos inquilinos da linguagem que a ancoram a um ou outro pronome, nome ou vida. Nos parece algo criador que tanto a poesia quanto a água nos emprestem tanta potencialidade sem juízo e sem expectativas.


Esta antologia não nasce da especificidade de um fato histórico, mas antes responde a uma longa história de invisibilização. Nosso trabalho é profundamente crítico das condições coloniais em que se inscreve a produção e publicação de livros nas Américas, reconhecendo que a experiência trans produz ontologias emancipadoras. As vozes trans do arquipélago caribenho, e porto-riquenho em particular, nos convidam a considerar as formas como as diversas crises ambientais e representacionais do capitaloceno são uma e mesma com a  história global da colonialidade que es boricuas conhecemos há séculos e na própria carne.


Esperamos que esta antologia gere uma conversação sobre poesia e ativismo trans em Porto Rico. Só por existir e circular, abrirá um espaço para os diálogos necessários que muites escritories trans anseiam. Ao nos preocuparmos profundamente e demonstrar apoio à nossa comunidade de poetas cuir e trans, nos pensamos como facilitadores dessa conversa. Ao organizar esta antologia, aprendemos muito sobre as necessidades atuais da comunidade de escritories trans de Porto Rico, o que nos ajudará a co-desenhar projetos que moldarão futuras intervenções estético-políticas centradas, sobretudo, na experiência trans. Reconhecemos, no entanto, que nosso trabalho não existe no vácuo, mas sim continua o trabalho das comunidades a que pertencemos. Nossos antecedentes são tão variados quanto nossas experiências. Eles vão desde a poesia da vida cotidiana e o ativismo de nosses ancestrais e companheires cuir e trans até esforços literários mais formais, como a antologia "Los otros cuerpos" (2007) e iniciativas mais recentes de organizações e coletivos locais como Casa Cuna e EspicyNipples, entre outros.


Em um estudo realizado em 2015 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, foi constatado que um número alarmante de organizações latino-americanas e caribenhas relataram que a expectativa de vida de uma mulher trans em sua região era de 30-35 anos. Outras pessoas trans enfrentam expectativas, e muitas vezes condições de vida, igualmente nefastas. A isso se soma o fato de que todas as pessoas trans enfrentam condições de morte prematura ainda maiores se forem negras, indígenas, multirraciais ou vivam com outras opressões interseccionais.


Os corais, por outro lado, estão entre as espécies mais longevas do planeta. Embora algumas colônias de corais estejam programadas para viver mais de 4.000 anos, o aquecimento global e a poluição marinha estão ameaçando o lento crescimento do animal, que está sendo destruído a passos gigantes. A recente onda de feminicídios, muitos deles envolvendo mulheres trans, e as violências letais contra pessoas cuir, trans e não bináries no arquipélago boricua nos dão uma comparação pertinente. Antologizar, ou seja, criar um arquivo vivo da poesia trans, é defender a vida trans e apostar em sua longevidade, em sua capacidade de transcender os confins genéricos onde tem permanecido submersa, como o arrecife. Com esta antologia, queremos invocar a interrelacionalidade de nossos ecossistemas, onde as vidas mais vulnerabilizadas, por suas infinitas capacidades de sobrevivência e majestosidade diante das condições mais adversas, têm muito a nos ensinar sobre como podemos superar as múltiplas catástrofes de nossos tempos.



Em uma miração distante, es primeires habitantes de nossas terras deixaram uma mostra escrita através de um intermediário da expansividade de suas noções de gênero e sexualidade, de sua articulada cosmovisão. Estamos nos referindo à Relación acerca de las antigüedades de los indios de Ramón Pané - ou, melhor ainda, aos testemunhos vitais des primeires habitantes que ela contém, como aquela abóbora transbordando pelos ossos de Yayael, transformados no fim em peixes, na origem e princípio de todo o mar. Acontece que antes, durante ou depois (assim de tortuosas são nossas temporalidades), sob chuvas torrenciais, desapareceram as pegadas das primeiras mulheres para cair das árvores, escorregadias como enguias, "um certo tipo de pessoas, que não eram homens nem mulheres, nem tinham sexo de macho nem de fêmea". Nem mesmo os nativos de mãos ásperas puderam possuí-las ou penetrá-las, nem fazer com que fossem mulheres, insiste Pané, "visto que não tinham sexo de macho nem de fêmea". Apenas um pássaro incrivelmente habilidoso e incrivelmente belo conheceria a matéria de seus corpos, materializando nelus um buraco que é suplemento, excesso, farsa e portal. Esta é a genealogia trans da qual nos declaramos herdeires e cúmplices, enquanto sangramos e cicatrizamos desde aquela ferida aberta que é nossa colonialidade.


As seções do livro correspondem a características que nossas comunidades compartilham com os arrecifes, no contexto abundante de múltiplas e complexos engendramentos que testemunharam nosses ancestrais. Hoje em dia, cada arrecife contém uma biodiversidade comparável à de uma floresta tropical.


Por essa correspondência floresta-arrecife, nomeamos a primeira seção de Orilla tupida. Em vez de replicar a linguagem neoliberal da "diversidade" que, como observa acertadamente o poeta José Guadalupe Olivarez, é usada para excluir as outridades que pretende salvar, optamos por pensar na biodiversidade dentro dos espaços cuir e trans e como essa riqueza tem sido chave para a nossa sobrevivência. Esta seção reúne poemas que aspiram a criar biomas generosos e densos.


Uma das maiores ameaças enfrentadas pelos arrecifes é o branqueamento dos corais, um processo resultante da contaminação e subsequente morte da zooxantelas, alga que vive nos corais, fornecendo-lhes cor e alimento. A seção Brillito de alga aponta como o brilho performático, somático e socioestético nutre e adorna a vida trans. Nesta seção reunimos poemas que sentimos que celebram os aspectos não-teleológicos da existência trans.


A relação entre as células vegetais, as zooxantelas e o animal coral inspirou o nome da seção Vegetanimal. Nesta seção, reunimos aqueles poemas que reconhecem as formas pelas quais as pessoas de experiência trans nos necessitamos mutuamente e exploram como podemos criar relações simbióticas, em vez de codependentes, que são colaborativas, em vez de reproduzir dinâmicas baseadas na exploração.


A pesquisadora Carina Fish estuda há anos os esqueletos de corais. Consegue usar os anéis dos esqueletos como se fossem os anéis do tronco de uma árvore para quantificar a passagem do tempo e a relação entre as mudanças extra-oceânicas e a vida marinha. Lendo esses anéis, podemos entender, por exemplo, como as mudanças climáticas afetam os arrecifes. Na seção Anillo Protector, imaginamos que esses anéis não são apenas um arquivo de transformações, mas também podem proteger o que arquivam. Os anéis sagrados marcam um antes e um depois das mudanças e, de alguma forma, guiam quem sabe lê-los em direção a um futuro compartilhado. Aqui, reunimos os poemas que contribuem para o arquivo trans-histórico do futuro-presente.


Agradecemos a todes es poetas que participaram, a Nicole Cecilia Delgado e Amanda Hernández por acreditarem neste projeto e às nossas famílias escolhidas pelo apoio sem o qual nunca teríamos nos atrevido a editar esta antologia.


Com brilho e ternura, 

Raquel Albarrán 

Roque Raquel Salas Rivera 

Ocean Val Arboniés Flores 


 
 
 

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